
A loja da rua Fernandes Tomás, no Porto, é o maior dos pontos de venda da Reto à Esperança. É lá, numa sala ampla que também funciona como igreja, paredes meias com filas e filas de mobiliário usado, que nos encontramos com João Pereira, um dos responsáveis pelas atividades da região norte.
A Reto à Esperança, conta João, nasceu em meados dos anos 80, por iniciativa de um casal de missionários evangélicos americanos. Respondendo a uma inspiração, um chamamento de Deus, foram para Espanha e propuseram-se ajudar toxicodependentes sem abrigo. Estava-se no auge do consumo de drogas injetáveis e havia muito que fazer. A comunidade foi crescendo, num projeto de “mudança física, psíquica e espiritual”, e chegou a Portugal em 1994. A organização esqueceu-se de traduzir o “reto” espanhol paro o “repto” português (desafio), confundindo alguns nacionais. Mas o nome resume bem o espírito do projeto: ajudar pessoas a recuperar esperança, através da fé cristã, uma fé “prática”, presente nomeadamente nas atividades de recuperação de objetos que constituem a base económica da organização.
João Pereira entrou na Reto em 1999, “com a vida toda destroçada”, e está na instituição desde então. Como os outros beneficiários, antigos ou recentes, não é um assalariado; é voluntário. A Reto oferece-lhe alojamento, alimentação, trabalho e um pequeno estipêndio para despesas pessoais. Há muitas entradas e saídas de pessoas, é o princípio da reinserção; alguns ficam, e são esses que asseguram a gestão da organização e o acompanhamento dos recém-chegados. E se no passado o perfil dos beneficiários se prendia sobretudo com abuso de drogas, hoje entram também na Reto pessoas com problemas de alcoolismo, perturbações mentais, sem abrigo; alguns vêm cumprir penas de trabalho comunitário. A Segurança Social e os hospitais encaminham alguns utentes, sendo que a Reto se depara não raro com pedidos a que não consegue dar resposta, como casos de problemas psíquicos graves ou idosos em perda de autonomia. Durante a crise, perante as carências básicas constatadas, a loja de Fernandes Tomás abriu um refeitório social, que continua em funcionamento.
A recolha e revenda de bens usados é a fonte de rendimento da Reto, a par de outras atividades com menor expressão (como a serralharia de Vila Nova de Gaia e as carpintarias de Coimbra e Loures, que executam trabalhos a partir de matérias virgens). As práticas foram evoluindo: no passado, perante uma menor disponibilidade de materiais, “até parafusos do chão se apanhava com ímanes”, conta João. A indústria da reciclagem e os requisitos ambientais eram mais incipientes, e por isso os colchões e sofás que ficavam por vender eram queimados. Hoje em dia, os 50% de materiais que não vão para loja (por falta de qualidade, mau estado ou avaria) são separados e encaminhados para reciclagem, constituindo fontes de rendimento complementares.

Quinta, oficinas e campanhas de evangelização
O Centro Reto de Perosinho, em Vila Nova de Gaia, é uma quinta de 2 mil metros quadrados onde vivem 50 pessoas. Há 2 cavalos (pelo prazer de montar) e também vacas, porcos e galinhas para consumo. Todas as infraestruturas foram construídas pelos trabalhadores/beneficiários. Para além de 4 carrinhas para transporte de bens doados, o centro tem também uma caravana utilizada para campanhas bianuais de evangelização. Foi numa destas campanhas que Hélder Júnior conheceu a Reto, há 10 anos. Saiu da droga “a frio”, abraçando o “Deus vivo e poderoso” que a instituição divulga.
Helder Júnior mostra-nos a quinta: edifício principal, instalações dos animais, contentores para reciclagem (cerca de 20 toneladas de madeira seguem mensalmente para a Finsa, fabricante de painéis de madeira aglomerada e MDF), oficina de mecânica, serralharia e atelier de reparação de eletrodomésticos.

Neste atelier trabalha Janardo, na comunidade há 12 anos. Não era seu plano ficar tanto tempo, mas depois de deixar a heroína, já perto dos 40 anos, não encontrou trabalho. Trocou a arte de padeiro pela de reparador, aprendendo com os companheiros, e agora dedica-se a recuperar as máquinas que ali chegam, com uma taxa de 50% de sucesso. Alguns objetos só precisam de limpeza, outros requerem mais atenção: micro-ondas com fusíveis avariados (depois vendem-se bem, sobretudo a estudantes), máquinas de lavar roupa (também se vendem bem) com a gaveta do detergente rota, como a que tinha em mãos durante a nossa visita. O seu atelier está cheio de peças de substituição que vai retirando das máquinas que não consegue reparar, e que servem para futuras reparações.