Quando um novo utente ingressa na Despertar, as prioridades são a saúde e os problemas judiciais, conta José Jacinto, vice-presidente. Os custos são cobertos pela organização, que paga, se for o caso, antirretrovirais e os honorários dos avogados. Importa ter a saúde vigiada e resolver os problemas em tribunal. Assim começa a reinserção.
Depois de um período de “quarentena”, a pôr a vida nos eixos e a evitar recaídas nas dependências, o utente pode, e deve, usufruir da liberdade que lhe oferece a Despertar. É assim que a instituição se define: aberta ao exterior, e nisso diferente de organizações congéneres, “demasiado rígidas e fechadas sobre si próprias”. A Despertar, conta José Jacinto, não professa nenhuma fé, não impõe a prática religiosa como via de reinserção, não impede os seus membros de fumar ou beber moderadamente, e promove o contacto regular destes com as famílias, disponibilizando-lhes até um dinheirinho de bolso para possam manter esse contacto sem as sobrecarregar financeiramente. A identidade da organização alicerça-se nesta ideia de uma reinserção mais liberal, em sintonia com o mundo real.
Como que a demonstrar essa abertura, José convida-nos a ficar para o almoço. Ficamos. Na loja de Sacavém, para além do escritório, há uma cozinha, toda equipada com material doado, e onde João Carlos Santos, 51 anos, prepara a refeição para 7 pessoas. Enquanto vigia o arroz de tomate, confidencia que “cozinhar traz paz”. Entretanto chegam dois colegas que estiveram a descarregar o camião após uma recolha, e o almoço começa.
A dívida ao fisco que matou a melhor loja
Falamos da loja de Algés, encerrada em 2018. Por ter uma clientela conhecedora, para ali se encaminhavam os artigos mais valiosos; mas fechou porque a organização não conseguia suportar a renda. Tudo começou com uma auditoria da Autoridade Tributária, a propósito de um certo montante de IVA que ficara por recuperar. A AT examinou as contas e determinou que a Despertar, que nunca liquidara IVA desde a sua fundação em 2002, deveria ter estado a fazê-lo. Consequência: uma coima de 130 mil euros. Contestando sem sucesso a decisão, a Despertar está a pagar a coima em prestações. Consequências deste esforço financeiro: teve de renegociar rendas, deixar de aceitar novos utentes (de 85 restam 52), e fechar a loja de Algés. A Despertar vê como “aberrante” o enquadramento em matéria de IVA que lhes foi imposto (taxa máxima, 23%), alegando que os artigos já pagaram IVA aquando da primeira venda, e que a instituição não deveria “financiar o Estado” quando afinal presta um serviço social que se traduz em poupanças para os cofres públicos. Ainda que as organizações congéneres nacionais estejam sujeitas ao mesmo enquadramento de IVA, a verdade é que em vários outros países a reutilização solidária beneficia de IVA reduzido (6%) em nome dos benefícios sociais e ambientais que gera (ver caso da Rede de Centros e Lojas Circulares da Flandres, Bélgica).
A Despertar orgulha-se de nunca ter pedido apoios ao Estado. Essa independência, alicerçada na capacidade de gerar os seus próprios meios de subsistência, constitui outro dos traços identitários da organização.